VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O PAPEL DA CRIMINOLOGIA NA PROTEÇÃO DA MULHER
CAJAZEIRAS - PB
2025
FACULDADE EDUCA TOTAL
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O PAPEL DA CRIMINOLOGIA NA PROTEÇÃO DA MULHER
CAJAZEIRAS - PB
2025
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E O PAPEL DA CRIMINOLOGIA NA PROTEÇÃO DA MULHER
RESUMO
Este trabalho aborda a violência doméstica contra a mulher e analisa o papel da criminologia na compreensão e enfrentamento desse fenômeno. Tal problemática consiste na persistência de agressões de natureza física, psicológica, moral, sexual e patrimonial em contextos familiares e afetivos, que expõem a mulher à vulnerabilidade diante da insuficiência das políticas públicas e da seletividade do sistema de justiça. Essa questão se impõe em razão da necessidade de ampliar a análise para além da dimensão jurídica, incorporando uma leitura crítica e multidisciplinar sobre as causas e consequências da violência de gênero. O propósito central desta pesquisa é investigar de que forma a criminologia, em especial suas vertentes crítica e feminista, contribui para a construção de estratégias mais eficazes de proteção à mulher. Para isso, foram empregados os procedimentos de uma revisão de literatura, com levantamento de livros, artigos científicos e periódicos acadêmicos nacionais, selecionados com base em sua relevância teórica e atualidade. Esse intento foi fundamentado a partir da revisão bibliográfica, com enfoque nas transformações históricas da criminologia, nos conceitos e causas da violência doméstica, na análise crítica da atuação institucional e nos desafios enfrentados pelas políticas públicas. A pesquisa evidenciou que, embora haja avanços legais significativos, como a Lei Maria da Penha, ainda existem lacunas estruturais e institucionais que dificultam a efetiva proteção das vítimas. Conclui-se que a criminologia exerce papel essencial na análise do problema e na construção de respostas mais sensíveis, inclusivas e transformadoras.
Palavras-chave: Violência Doméstica. Criminologia. Proteção Da Mulher. Políticas Públicas. Desigualdade De Gênero.
1. INTRODUÇÃO
A violência doméstica contra a mulher constitui um dos principais desafios enfrentados pelas sociedades contemporâneas, refletindo desigualdades históricas de gênero e padrões socioculturais que naturalizam a subordinação feminina. No Brasil, os índices de agressões, abusos e feminicídios revelam uma realidade alarmante e persistente, que transcende barreiras econômicas e geográficas. Diante desse cenário, torna-se essencial examinar a problemática da violência doméstica sob uma perspectiva criminológica, buscando compreender suas raízes, dinâmicas e possíveis formas de enfrentamento. Esse enfoque permite ultrapassar abordagens reducionistas centradas exclusivamente na punição, abrindo espaço para análises críticas das estruturas que sustentam a perpetuação da violência (FAÇANHA, 2020).
Ao considerar a violência doméstica como fenômeno multifacetado, a criminologia oferece instrumentos teóricos capazes de revelar fatores estruturais e simbólicos que sustentam as relações violentas. A análise do papel da criminologia na proteção da mulher permite ampliar o olhar sobre o fenômeno, deslocando o foco da culpabilização individual para a reflexão sobre os mecanismos sociais e institucionais que dificultam a ruptura do ciclo de violência. Compreender como as abordagens criminológicas contribuem para a construção de políticas públicas eficazes e para o fortalecimento dos direitos das mulheres representa um passo essencial na consolidação de uma cultura de respeito e equidade de gênero (LIMA e MACHADO, 2024).
A escolha desse tema surge da constatação de que, apesar de avanços legislativos como a promulgação da Lei Maria da Penha, ainda há limitações significativas na atuação dos sistemas de justiça e segurança pública, especialmente no que diz respeito à prevenção e à proteção efetiva das vítimas. A realidade cotidiana de muitas mulheres brasileiras ainda é marcada pelo medo, pela omissão estatal e pela revitimização institucional. Desse modo, analisar a atuação criminológica nesse campo revela-se crucial para a elaboração de novas estratégias de enfrentamento e acolhimento, centradas na dignidade humana e na justiça social.
Este estudo tem como objetivo geral analisar de que forma a criminologia pode contribuir para a proteção da mulher em situação de violência doméstica. Para alcançar esse propósito, busca-se investigar os fatores criminológicos envolvidos na perpetuação dessa violência, avaliar o impacto das políticas públicas existentes, identificar as principais contribuições da criminologia feminista e crítica, além de mapear os desafios enfrentados na efetivação das medidas protetivas e preventivas. A pesquisa propõe, portanto, uma leitura ampliada da questão, com base em fundamentos teóricos e dados empíricos.
A metodologia adotada baseia-se na revisão de literatura, com levantamento e análise de fontes bibliográficas relevantes, como artigos científicos, livros especializados e periódicos acadêmicos. A abordagem será qualitativa, fundamentada na sistematização e interpretação crítica das contribuições acadêmicas sobre o tema. Busca-se consolidar um panorama teórico que integre diferentes correntes da criminologia e perspectivas interdisciplinares, promovendo uma compreensão aprofundada e contextualizada do fenômeno da violência doméstica e dos meios de combatê-lo de forma mais humanizada e eficaz.
Este trabalho se justifica pela urgência de se discutir mecanismos mais eficientes e sensíveis de proteção à mulher, especialmente em um país com elevados índices de feminicídio e subnotificação de agressões. A criminologia, ao lançar luz sobre os aspectos sociais, simbólicos e institucionais da violência, permite a formulação de estratégias mais integradas e coerentes com a complexidade do problema. Assim, pretende-se contribuir para o debate acadêmico e para o aprimoramento das práticas voltadas à garantia dos direitos das mulheres e à construção de uma sociedade mais justa e segura.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 FUNDAMENTOS DA CRIMINOLOGIA E SUA EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A criminologia, enquanto campo do conhecimento, emerge no século XIX, impulsionada pelo interesse científico em compreender o fenômeno da criminalidade de maneira racional e empírica. Essa nova ciência social procurava romper com explicações místicas ou religiosas do crime, direcionando seu foco para causas observáveis. Com base em métodos positivistas, estudiosos passaram a investigar características biológicas e psicológicas dos indivíduos infratores. Mendes et al. (2016) apontam que, nesse estágio inicial, prevalecia a ideia de que o criminoso era portador de uma patologia identificável, cabendo à ciência diagnosticá-la e neutralizá-la.
No entanto, a criminologia não permaneceu estática. Ao longo do tempo, sofreu profundas transformações em suas abordagens e objetos de estudo, refletindo mudanças sociais e políticas. A crítica ao determinismo biológico, presente nos estudos clássicos, deu origem a perspectivas mais sociológicas, que passaram a analisar o crime como produto de desigualdades estruturais. Segundo Barcellos (2020), esse deslocamento teórico contribuiu para a reformulação da criminologia como ferramenta crítica, permitindo o questionamento das instituições de controle penal e das relações de poder que operam na definição do crime.
Durante o século XX, consolidaram-se diversas escolas criminológicas, cada uma oferecendo uma lente distinta para a interpretação da conduta delitiva. A criminologia funcionalista, por exemplo, via o crime como um fenômeno necessário para o equilíbrio social, ao passo que a teoria do etiquetamento criticava a seletividade do sistema penal. Para Pontes (2020), essa pluralidade de perspectivas demonstrou que o crime não pode ser compreendido apenas por suas manifestações visíveis, exigindo o estudo das estruturas simbólicas e normativas que moldam seu significado.
Um marco importante na trajetória da criminologia foi o surgimento da criminologia crítica, a partir dos anos 1960. Essa corrente rompe com o modelo tradicional e denuncia a função política das normas penais, frequentemente usadas para criminalizar a pobreza e reforçar desigualdades. A criminologia crítica revela que o sistema penal atua seletivamente, punindo com mais rigor as classes marginalizadas. Façanha (2020) argumenta que essa perspectiva permitiu desconstruir a neutralidade aparente do direito penal e abriu espaço para abordagens emancipadoras.
A partir das críticas formuladas pela criminologia crítica, emergem os feminismos criminológicos, que introduzem a análise de gênero como categoria central na compreensão do crime e da violência. As teóricas feministas denunciam a invisibilização das mulheres nas teorias tradicionais e a omissão dos mecanismos de opressão patriarcal na produção da violência. Marques et al. (2019) afirmam que essa abordagem contribui para iluminar as formas pelas quais o sistema de justiça penal reproduz a violência institucional contra mulheres vítimas de violência doméstica.
Esse desenvolvimento trouxe implicações importantes para o modo como se concebe o papel da criminologia no enfrentamento à violência de gênero. A abordagem feminista não apenas analisa a estrutura desigual das relações sociais, mas também propõe a reformulação dos conceitos clássicos de crime, vítima e justiça. De acordo com Santos (2019), ao desconstruir categorias universais e masculinizadas, as criminólogas feministas ampliam as possibilidades de construção de políticas mais eficazes e sensíveis à realidade das mulheres.
A criminologia negligenciou a experiência feminina, tratando o crime a partir de uma ótica masculina e ignorando as especificidades de gênero. Essa omissão colaborou para o silenciamento das vítimas de violência doméstica e para a naturalização de práticas discriminatórias no sistema penal. Essa lacuna teórica e prática limitou a efetividade das estratégias de enfrentamento e manteve o ciclo de violência invisibilizado (COSTA e NUNES, 2017 p.04).
O avanço das pesquisas feministas em criminologia impulsionou também mudanças legislativas e institucionais. A criação da Lei Maria da Penha representa um marco nesse processo, ao reconhecer a gravidade da violência doméstica e estabelecer mecanismos específicos de proteção. Lima e Machado (2024) destacam que, embora a lei represente um avanço significativo, sua implementação enfrenta desafios que exigem o engajamento crítico da criminologia para o aperfeiçoamento das práticas protetivas.
A evolução da criminologia revela que seu desenvolvimento está profundamente vinculado às transformações sociais. Suas teorias refletem, contestam ou reforçam as estruturas de poder dominantes. Pacheco (2018) indica que compreender essa dinâmica é fundamental para que a criminologia cumpra um papel socialmente relevante, contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa, na qual o enfrentamento da violência doméstica seja prioridade.
A interdisciplinaridade passou a ser uma característica central da criminologia contemporânea, permitindo a interlocução com áreas como o direito, a sociologia, a psicologia e os estudos de gênero. Esse diálogo fortalece a capacidade analítica da disciplina e aprofunda sua compreensão sobre os mecanismos de reprodução da violência. Segundo Ávila (2021), integrar diferentes saberes é uma estratégia fundamental para formular respostas mais abrangentes e transformadoras.
As escolas criminológicas atuais também têm buscado incorporar abordagens interseccionais, considerando como raça, classe, gênero e sexualidade interagem na construção da criminalidade e na atuação dos sistemas punitivos. Essa ampliação do olhar evidencia que a criminologia não pode mais se limitar à análise do ato criminoso isolado. Para Mendes et al. (2016), torna-se necessário compreender o crime como fenômeno social complexo, imerso em relações históricas de desigualdade e exclusão.
A trajetória da criminologia mostra que sua vocação crítica não está apenas em diagnosticar o sistema penal, mas em contribuir para sua superação enquanto instrumento de opressão. Seu compromisso deve ser com a emancipação dos sujeitos historicamente marginalizados. De acordo com Façanha (2020), a criminologia precisa manter-se em constante revisão, atualizando seus pressupostos teóricos e metodológicos à luz das novas demandas sociais e dos direitos humanos.
2.2 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: CONCEITOS E CAUSAS
A violência doméstica contra a mulher configura-se como uma das mais persistentes formas de violação dos direitos humanos. Essa prática manifesta-se de maneira física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, dentro de um contexto de relações afetivas marcadas por dominação. Segundo Mendes et al. (2016), a característica mais marcante desse tipo de violência é sua continuidade, o que diferencia essas agressões de atos isolados, revelando um padrão de controle e coerção que afeta profundamente a dignidade e a autonomia da mulher.
A construção social da desigualdade entre os gêneros está diretamente ligada à origem e manutenção da violência doméstica. Em diversas sociedades, valores patriarcais sustentam a crença na superioridade masculina e legitimam comportamentos agressivos sob a justificativa de disciplina ou proteção. Pacheco (2018) afirma que esse cenário é agravado pela conivência institucional, que, muitas vezes, descredibiliza a palavra da vítima e fragiliza os mecanismos de denúncia. Isso contribui para o silenciamento das mulheres e a perpetuação do ciclo de abusos.
Compreender os conceitos envolvidos exige olhar para além da materialidade das agressões. A violência doméstica está ancorada em uma estrutura simbólica que naturaliza o sofrimento feminino no espaço privado. Barcellos (2020) aponta que essa naturalização se manifesta no discurso jurídico, nas práticas policiais e nas políticas públicas ineficazes, tornando difícil a efetivação de uma proteção real às vítimas. É nesse sentido que o enfrentamento exige mudanças culturais e institucionais simultâneas.
A origem do comportamento violento não pode ser atribuída exclusivamente a fatores individuais, como impulsividade ou distúrbios emocionais. Elementos como desigualdade econômica, baixa escolaridade e dependência financeira também atuam como catalisadores da violência. De acordo com Façanha (2020), essas vulnerabilidades criam um ambiente propício para a dominação e o abuso, dificultando a autonomia da mulher e sua capacidade de romper com o agressor.
A violência psicológica, embora menos visível que a física, é devastadora em suas consequências. Humilhações, ameaças e manipulação emocional corroem a autoestima da mulher, tornando-a cada vez mais dependente do agressor. Pontes (2020) destaca que essa forma de violência é frequentemente subestimada, tanto por profissionais quanto pelo próprio sistema de justiça, o que compromete a proteção integral da vítima. A ausência de marcas físicas não pode ser confundida com a ausência de sofrimento.
Além das relações interpessoais, há fatores estruturais que contribuem para a reprodução da violência doméstica. A falta de políticas públicas eficazes, a precariedade dos serviços de atendimento e a morosidade judicial enfraquecem a confiança das mulheres nas instituições. Mesmo diante de marcos legais como a Lei Maria da Penha, a implementação de medidas protetivas esbarra em obstáculos práticos que comprometem sua efetividade (LIMA e MACHADO, 2024 p.02).
É necessário também considerar as interseccionalidades que atravessam as vivências femininas. Mulheres negras, indígenas, trans e periféricas enfrentam camadas adicionais de opressão, que aumentam sua vulnerabilidade à violência. Costa e Nunes (2017) evidenciam que a aplicação das leis ainda ignora essas especificidades, tratando as mulheres como um grupo homogêneo e invisibilizando a pluralidade de suas realidades. A proteção integral depende do reconhecimento dessas diferenças.
A violência doméstica tem impactos profundos na saúde física e mental das vítimas. Depressão, ansiedade, síndrome do pânico, distúrbios alimentares e até tentativas de suicídio figuram entre as consequências mais recorrentes. Marques et al. (2019) afirmam que o sofrimento causado por essas agressões se estende ao longo da vida, mesmo após o rompimento da relação abusiva, exigindo um suporte psicológico contínuo e especializado.
A crença no amor romântico como justificativa para a submissão é outro elemento presente em muitos relacionamentos abusivos. Muitas mulheres permanecem em vínculos violentos por acreditarem na possibilidade de mudança do parceiro ou por medo de retaliações. Santos (2019) observa que a socialização feminina ainda impõe à mulher o papel de cuidadora e pacificadora, responsabilizando-a pelo fracasso da relação e dificultando sua percepção sobre o abuso sofrido.
Aspectos legais também influenciam na forma como a violência doméstica é compreendida e combatida. Embora a legislação brasileira tenha avançado, ainda há lacunas na responsabilização efetiva dos agressores. Ávila (2021) aponta que muitas medidas judiciais são descumpridas, revelando a necessidade de uma atuação mais rigorosa e de fiscalização mais intensa. A impunidade, quando presente, reforça a sensação de insegurança e desamparo.
A responsabilização social da vítima é um obstáculo recorrente no combate à violência doméstica. Comentários que culpabilizam a mulher por sua situação ou que questionam sua moralidade minam sua força para denunciar. Segundo Pacheco (2018), essa culpabilização institucionalizada revela um sistema penal que, ao invés de proteger, revitimiza. A transformação desse cenário exige não apenas normas, mas também a reeducação da sociedade como um todo.
A violência doméstica contra a mulher deve ser compreendida como fenômeno complexo, enraizado em estruturas históricas e culturais que normalizam o controle e o sofrimento feminino. Suas causas extrapolam o âmbito privado e exigem respostas amplas, interdisciplinares e comprometidas com os direitos humanos. Para Barcellos (2020), o combate efetivo a essa violência só será possível com ações articuladas entre os setores da saúde, segurança, justiça e educação, capazes de garantir não apenas proteção, mas também dignidade e reparação às vítimas.
2.3 A CRIMINOLOGIA NA COMPREENSÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
A criminologia desempenha um papel fundamental na compreensão da violência doméstica ao desvendar as estruturas sociais e culturais que sustentam esse tipo de agressão. Diferente das abordagens punitivistas centradas na figura do agressor como sujeito desviante, a criminologia crítica questiona os padrões institucionais e históricos que produzem e mantêm a dominação masculina. Segundo Marques et al. (2019), a violência doméstica não se trata apenas de uma questão privada, mas de uma construção social que reflete o desequilíbrio de poder entre homens e mulheres.
Ao analisar a violência doméstica sob essa perspectiva, a criminologia expõe a seletividade do sistema penal, que muitas vezes falha em proteger as vítimas e punir os agressores. O aparato judicial, mesmo diante de leis específicas, opera com lacunas que favorecem a continuidade da violência. Façanha (2020) observa que a impunidade e a morosidade dos processos judiciais reforçam a desconfiança da vítima em relação à eficácia das medidas protetivas oferecidas.
Estudos criminológicos evidenciam que o Estado atua de forma limitada quando se trata de prevenir a violência contra a mulher. A proteção jurídica, embora essencial, não é suficiente para romper ciclos de agressão consolidados em vínculos afetivos. Costa e Nunes (2017) destacam que o enfrentamento eficaz exige uma atuação intersetorial, com articulação entre serviços de saúde, assistência social, segurança pública e educação.
A criminologia feminista, em especial, tem sido uma das vertentes mais produtivas no campo da análise da violência doméstica. Essa abordagem parte da crítica à neutralidade das ciências criminais e propõe a inclusão das experiências das mulheres como centro da investigação. Para Pontes (2020), as práticas e discursos jurídicos tradicionais desconsideram a complexidade da vivência feminina, perpetuando invisibilizações e desigualdades institucionais.
Não se pode ignorar que a criminologia, quando instrumentalizada para atender à lógica conservadora, pode contribuir para reforçar preconceitos e estigmas. A criminalização excessiva, em nome da proteção, por vezes recai sobre as próprias vítimas, que são culpabilizadas por não deixarem o agressor ou por não denunciarem. Santos (2019) aponta que é necessário repensar as categorias jurídicas com base em experiências concretas, evitando soluções simplistas e punitivistas.
A análise criminológica amplia o entendimento das causas e efeitos da violência doméstica ao reconhecer sua natureza multidimensional. Não se trata de um ato isolado, mas de uma prática que se insere em um contexto de controle, posse e desigualdade. De acordo com Ávila (2021), a criminologia deve ser capaz de dialogar com outras áreas do saber, absorvendo elementos da psicologia, do serviço social e da sociologia para formar um quadro completo do problema.
A criminologia também se debruça sobre os mecanismos de revitimização institucional, que ocorrem quando a mulher é exposta, desacreditada ou constrangida ao buscar ajuda. Em delegacias, fóruns ou unidades de saúde, muitas vítimas são submetidas a procedimentos que reproduzem a violência sofrida em casa. Barcellos (2020) denuncia essa estrutura como uma extensão do sistema patriarcal, evidenciando a necessidade de formação adequada dos profissionais que atuam na rede de proteção.
Importante considerar que o crime de violência doméstica é, muitas vezes, minimizado por práticas jurídicas que priorizam a conciliação. Essa tendência ignora a assimetria de poder entre as partes e fragiliza a responsabilização do agressor. Lima e Machado (2024) advertem que a cultura da mediação, quando aplicada indiscriminadamente, pode representar uma armadilha, pois induz a mulher ao perdão forçado e perpetua o ciclo da violência.
A criminologia permite, ainda, uma avaliação crítica da eficácia das políticas públicas voltadas à proteção da mulher. A implementação de leis como a Maria da Penha precisa ser acompanhada de investimento em infraestrutura, pessoal e capacitação. A simples existência do aparato legal não garante sua efetividade, sendo essencial monitorar sua aplicação e promover ajustes constantes baseados em indicadores reais (PACHECO, 2018 p.05).
Por meio do olhar criminológico, é possível compreender que a violência doméstica não é um problema individual, mas social, sustentado por normas culturais e práticas institucionais permissivas. O discurso da proteção precisa vir acompanhado de mudanças estruturais que garantam a autonomia das mulheres e rompam com o ciclo de dependência. Mendes et al. (2016) salientam que o desafio está em articular respostas punitivas com ações de empoderamento e acolhimento.
A atuação criminológica exige vigilância constante sobre os discursos e práticas adotados pelas instituições que deveriam zelar pela segurança das vítimas. A análise de como os órgãos de segurança e justiça lidam com casos de violência doméstica revela um padrão de negligência e naturalização do abuso. Para Costa e Nunes (2017), essa negligência institucional reforça o papel da criminologia como instrumento de denúncia e transformação social.
A criminologia deve assumir um papel ativo no enfrentamento à violência doméstica ao romper com paradigmas tradicionais e construir novos referenciais teóricos e práticos. A análise crítica e comprometida com a justiça social permite não apenas compreender a violência, mas também propor caminhos para sua superação. Segundo Marques et al. (2019), essa construção exige o reconhecimento da mulher como sujeito de direitos e a reformulação das estruturas jurídicas e sociais que sustentam a desigualdade de gênero.
2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS E DESAFIOS NA PROTEÇÃO DA MULHER
A formulação de políticas públicas voltadas à proteção da mulher contra a violência doméstica constitui um avanço expressivo na história dos direitos humanos no Brasil. Contudo, a efetividade dessas ações enfrenta entraves estruturais que comprometem seu alcance. Segundo Pacheco (2018), há um distanciamento entre a elaboração normativa e a realidade vivenciada pelas vítimas, o que fragiliza o processo de denúncia e o acesso à justiça. O papel do Estado exige não só normas legais, mas mecanismos eficientes de aplicação.
A Lei Maria da Penha surge como principal marco jurídico nesse enfrentamento, sendo reconhecida internacionalmente pela sua abrangência e detalhamento. Ainda assim, a implementação plena dessa legislação permanece desigual entre as regiões brasileiras. Para Façanha (2020), a ausência de investimentos contínuos e de formação qualificada para os agentes públicos reduz a eficácia dos instrumentos de proteção previstos na lei, colocando em risco a integridade das mulheres atendidas.
Serviços como delegacias especializadas, casas de abrigo e centros de referência enfrentam limitações orçamentárias e operacionais. Em muitas localidades, a inexistência de tais estruturas obriga as vítimas a percorrer longas distâncias para acessar atendimento, o que desestimula a denúncia. De acordo com Costa e Nunes (2017), a territorialização das políticas é fator determinante para sua efetividade, sendo urgente a ampliação da cobertura nacional dos serviços de acolhimento e orientação.
A intersetorialidade se apresenta como um dos pilares fundamentais da política de proteção à mulher, exigindo articulação entre saúde, assistência social, segurança pública e sistema judiciário. A desarticulação entre esses setores compromete o atendimento integral da vítima. Pontes (2020) argumenta que a ausência de fluxos integrados e protocolos unificados resulta em encaminhamentos falhos e revitimização, ampliando a sensação de insegurança.
Outro obstáculo recorrente é a resistência institucional na aplicação das medidas protetivas. Muitas mulheres relatam o descumprimento de ordens judiciais por parte dos agressores sem que haja resposta imediata do sistema. Lima e Machado (2024) destacam que o monitoramento eletrônico e a ampliação da rede de proteção são medidas que precisam ser reforçadas, com atuação firme das autoridades responsáveis.
A formação de profissionais envolvidos no atendimento às vítimas ainda é deficiente em muitos contextos. Falta capacitação específica sobre violência de gênero, o que resulta em condutas inadequadas, culpabilização da mulher e banalização do risco. A sensibilização contínua das equipes multidisciplinares é essencial para garantir acolhimento humanizado e eficaz, rompendo com estereótipos que inviabilizam a escuta qualificada (MARQUES et al., 2019 p.06).
As políticas públicas também precisam considerar a diversidade das mulheres atingidas pela violência. As ações ainda são majoritariamente voltadas a um perfil universalizado, desconsiderando as especificidades de raça, classe, deficiência ou orientação sexual. Barcellos (2020) afirma que uma abordagem interseccional é indispensável para alcançar todas as mulheres de forma justa, garantindo que nenhuma seja excluída do sistema de proteção por sua identidade social.
Instrumentos como os centros de atendimento psicossocial e os programas de inclusão econômica têm papel decisivo na quebra da dependência emocional e financeira. Quando ausentes, dificultam a autonomia das mulheres e sua permanência fora do ciclo de violência. Ávila (2021) ressalta que o empoderamento material e psicológico da vítima é uma das estratégias mais eficazes para a prevenção da revitimização e a reconstrução da vida em liberdade.
A atuação do Ministério Público e do Judiciário precisa ser repensada com foco na celeridade dos processos e na escuta ativa das vítimas. Longos prazos e decisões burocráticas mantêm as mulheres em situação de risco. Mendes et al. (2016) destacam que a lentidão institucional age como forma de conivência com a violência, mostrando a importância da criação de varas especializadas e de defensorias públicas sensíveis ao tema.
A responsabilização do agressor, muitas vezes, ocorre apenas em fases avançadas do conflito, o que compromete a eficácia da proteção. Estratégias preventivas e educativas devem ser incorporadas às políticas públicas. Santos (2019) defende que campanhas de conscientização, educação de gênero nas escolas e trabalho com homens agressores são ações complementares indispensáveis para a transformação cultural necessária.
Iniciativas não governamentais desempenham papel fundamental no fortalecimento da rede de apoio às vítimas. Projetos comunitários e coletivos feministas conseguem alcançar territórios negligenciados pelo poder público. Para Pacheco (2018), a atuação conjunta entre Estado e sociedade civil potencializa os resultados das políticas, criando uma rede de solidariedade e acolhimento que ultrapassa os limites formais da legislação.
Apesar dos avanços, os desafios na proteção da mulher persistem como reflexo de uma cultura patriarcal ainda enraizada nas instituições. A mudança estrutural exige compromisso político contínuo, financiamento adequado e vigilância social. Costa e Nunes (2017) defendem que a efetivação das políticas públicas depende da pressão constante por equidade de gênero, com foco na construção de uma sociedade que não tolere nenhum tipo de violência contra a mulher.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da violência doméstica sob a ótica da criminologia permitiu compreender que o fenômeno ultrapassa o campo jurídico-punitivo, exigindo interpretações mais amplas que abarquem aspectos sociais, históricos e estruturais. O trabalho alcançou seu objetivo principal ao investigar como a criminologia, sobretudo em suas vertentes crítica e feminista, pode contribuir significativamente para a compreensão e enfrentamento da violência doméstica contra a mulher. Foi possível demonstrar que as teorias criminológicas oferecem instrumentos eficazes para a problematização da seletividade penal, da revitimização institucional e da insuficiência das políticas públicas existentes.
Os dados estudados indicam que, embora exista um arcabouço normativo avançado, sua aplicação efetiva ainda enfrenta inúmeros desafios. A fragilidade das instituições, a escassez de recursos e a ausência de articulação entre os serviços comprometem a proteção das vítimas e a punição dos agressores. O sistema de justiça ainda opera com lentes conservadoras, que ignoram as especificidades de gênero e perpetuam estigmas. Nesse contexto, a criminologia oferece um olhar crítico e necessário à reformulação das práticas institucionais e à construção de estratégias mais eficazes de combate à violência.
A hipótese inicial, que apontava para a importância da criminologia na construção de um entendimento mais completo da violência doméstica, confirmou-se ao longo do estudo. O aprofundamento teórico revelou que as políticas públicas só alcançarão sua plenitude se estiverem aliadas ao pensamento crítico e à escuta ativa das experiências das mulheres. A contribuição criminológica não se limita ao diagnóstico do problema, mas propõe também caminhos para sua superação, especialmente ao incorporar princípios de justiça social, equidade de gênero e respeito à dignidade humana.
Durante o percurso da pesquisa, algumas limitações foram identificadas, como a escassez de dados atualizados sobre a aplicação das medidas protetivas em regiões afastadas e a pouca visibilidade de estudos interseccionais. Recomenda-se, portanto, que futuros trabalhos aprofundem essas lacunas, explorando a atuação de redes comunitárias e a construção de práticas restaurativas. O estudo desenvolvido se mostra útil para contextos acadêmicos e profissionais que busquem ampliar o debate sobre o papel da criminologia na transformação das estruturas que sustentam a violência contra a mulher.
4. REFERÊNCIAS
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COSTA, Renata; NUNES, Carlos Fernando. Violência doméstica e discriminação de gênero: medidas protetivas e desafios de implementação. São Paulo: Juruá Editora, 2017. Disponível em: https://www.jurua.com.br/shop_item.asp?id=25462. Acesso em: 30 abr. 2025.
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